Curto&Grosso: A tensão entre Venezuela e Guiana pela região de Essequibo gerou nacionalismo e memes de ambos os lados. Há esforços para promover união na Guiana e muita ironia e irreverência para lidar com os anseios do Governo Bolivariano da Venezuela.
Tensão na América do Sul! Enquanto o continente não testemunha conflitos entre nações desde o século XX, a partir de dezembro de 2023, a perspectiva de seguir os passos da Europa e do Oriente Médio tem se manifestado. Os memes, é claro, ganham força e contornos políticos, mesmo que seja para satirizar a ineficácia do governo, incentivar o nacionalismo ou trazer consciência sobre determinado assunto.
A antiga disputa entre Venezuela e Guiana pela região de Essequibo ficou mais séria após o governo venezuelano realizar um referendo em dezembro de 2023 para anexar a região, estendendo a tensão para outros países, como o Suriname e o Brasil.
Kuwei Salazar (25), um venezuelano, discute sobre a controvérsia em torno do território de Essequibo e os memes em destaque. Kuwei reside em Igarassu, em Pernambuco, a 30km da capital, e tem grande afinidade pela Venezuela, destacando a sua longa história ligada ao território em questão.
Além disso, há a perspectiva de Luciano Santos (42), um brasileiro que reside na Guiana há uma década, já compartilhou uma relação com uma cidadã guianense e é pai de uma filha nascida no território em que se fala inglês. Ele trabalha com garimpo, um emprego que tem chamado a atenção de muitos brasileiros, segundo ele. Durante o contato com a fonte guianense, eram recorrentes as falhas na conexão, pois ele visita constantemente locais remotos a trabalho.
As duas fontes expressam ceticismo sobre a possibilidade de um conflito armado, atribuindo a culpa às ações do governo venezuelano, numa tentativa de desviar a atenção pública.
O sol da Venezuela nasce no Essequibo
Kuwei defende que o Governo Bolivariano de Venezuela se apropria de um meme antigo, no caso, uma frase repetida de geração em geração sobre Essequibo pertencer à Venezuela. Ele observa que a educação venezuelana sobre o tema contribui para a percepção geral de que o território é legítimo e sua reivindicação é justa. Portanto, usar peças publicitárias por parte do governo para instigar o nacionalismo é uma boa jogada de marketing.
Kuwei conta que, desde pequeno, ouviu a frase: “O sol da Venezuela nasce pelo Essequibo”. Essa frase em questão se tornou uma espécie de slogan do governo presente em muros, banners e diferentes tipos de mídia. Essa citação massificada atualiza o meme antigo e também o ressignifica.
No entanto, o venezuelano ressalta que a disputa não é com o povo da Guiana, mas sim contra interesses externos, como empresas petrolíferas e a presença dos Estados Unidos na região. Ele critica a falta de seriedade do governo de Nicolás Maduro em lidar com a situação de forma eficaz.
Kuwei, então, nota que os memes online sobre a reivindicação do Essequibo ganharam destaque após o referendo de Maduro, embora sempre tenham sido populares. A seguir, há um exemplo que ilustra esse sentimento por meio de um gráfico de pizza, o qual mostra as “Coisas mais ditas este ano”; abaixo, uma gíria indica “Tenho fé”, em referência ao Essequibo, enquanto “O Essequibo é nosso” aparece em menor porcentagem.
Somente uma Guiana
Questionado sobre os memes locais, Luciano Santos, da Guiana, destaca a desigualdade social, observando que muitos habitantes não possuem acesso à internet. “As pessoas daqui, no geral, são muito simples”, afirmou. Luciano explica que as pessoas buscam informações por outros meios. De acordo com pesquisa do DataReportal, em 2022, apenas 42.6% da população tem acesso à internet.
Ainda assim, ele notou uma crescente percepção de identidade unificada após a frase One Guyana (“somente uma Guiana”), com mudanças na educação do país após o início da tensão, fazendo com que as pessoas começassem a se manifestar nas redes sociais em defesa da Guiana, exibindo a bandeira nacional, pratos típicos, curiosidades e a diversidade de seu povo.
Em relação ao slogan One Guyana, ele conta que há uma ilustração, encomendada pelo presidente, que tem se espalhado nas campanhas governamentais e instigado manifestação popular pró-Guiana, mas observa que a imagem está sendo ridicularizada por estrangeiros, em especial por pessoas do Suriname, pois o país também reivindica uma parte territorial da Guiana, o que tornaria o país todo fragmentado se os territórios reivindicados fossem cedidos.
Com informações do site Guyana Times, o conceito cunhado pelo governo, liderado por Irfaan Ali, foi feito para provocar a unidade entre os guianenses e é visto como um instrumento valioso para “garantir o sucesso na próxima agenda de desenvolvimento da Guiana”.
Os esforços do governo de Irfaan parece surtir efeito nas redes sociais. Luciano mostra como exemplo de manifestação Pró-Guiana o vídeo abaixo, de uma instituição de ensino privada:
Contudo, ao ler os comentários, percebe-se que a maioria são de venezuelanos, comentando em espanhol que Essequibo é da Venezuela:
Para evidenciar como a logotipo da campanha de unificação do presidente da Guiana está sendo empregado em detrimento da narrativa original, um tweet, da conta @antrocanal, exibe o mapa da Guiana dividido, com reivindicações territoriais do Tigri para o Suriname e do Essequibo para a Venezuela:
#Atención Derrotemos la Mediática de Guyana quienes publican una imagen bajo el mismo diseño pero con el mapa erróneo de su país #13Dic
— Mi Mapa de Venezuela incluye nuestro Esequibo (@AntroCanal) December 13, 2023
Comparte, descarga, publica esta imagen
Que el mundo sepa que #EssequiboBelongsToVenezuela y #TigriBelongsToSuriname #MiMapa pic.twitter.com/HnGMFlilCE
Para reforçar sua campanha, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, precisou ficar mais presente na internet. Com a tensão eminente, criou, por exemplo, uma conta no X (“Twitter”), em setembro de 2023, dois meses antes da realização do referendo de Maduro. Assim, o chefe de Estado publica recorrentemente textos em proteção do território de seu país, explorando bastante a logo e a frase One Guyana.
This is the map of our beautiful Guyana!#NotaBladeofGrass #EssequiboBelongsToGuyana pic.twitter.com/NV9twU8r0W
— President Dr Irfaan Ali (@presidentaligy) December 7, 2023
Suriname entra em guerra memeal
Quando o presidente Nicolás Maduro realizou o referendo para anexar o Essequibo, a impresa não noticiou o ressurgimento de outra disputa territorial na América do Sul: o Suriname reivindica a região conhecida como Tigri, uma extensão de selva que, desde 1840, tem sido alvo de controvérsias territoriais entre o país e a Guiana. Na imagem abaixo, destaca-se em vermelho o território de Tigri.
A Guiana e o Suriname possuem relações diplomáticas estáveis, apesar dessa disputa histórica. Os dois compartilham muitas semelhanças geológicas, culturais e históricas, bem como a separação do resto da América Latina, por terem sido colonizados por países de idiomas e culturas distintas.
Apesar de não haver nenhuma manifestação formal do governo surinamês reclamando o território recentemente, na internet surgiram manifestações de surinameses em apoio à Venezuela em relação ao Essequibo, usando, muitas vezes, os memes online humorísticos.
A principal conta no X dessa guerra cultural em rede é o @SurinameCentral, que amplifica a reivindicação por Essequibo. Nesta publicação abaixo, a própria conta explica o meme na legenda em português: “Roubar é ruim”, acusando a Guiana de tomar territórios alheios.
i Love this Drawing 🤣
— Suriname Central (@SurinameCentral) December 10, 2023
Stealing is bad
Robar es mala
Roubar é ruim
Stelen is slecht
Voler c'est mal pic.twitter.com/WgskEDHbI5
Kuwei conhece a reivindicação do Suriname e explica a conexão entre venezuelanos e surinameses, fortalecida pela internet: “Nossos países não fazem fronteira, mas há um meme que diz que estaríamos mais próximos, como irmãos, se nossos territórios fossem recuperados. A distância se encurtaria e daria para sair da Venezuela e ir ao Suriname, atravessando a parte mais ao sul da Guiana, e daria uns 30km para chegar lá”, observa.
O olho que tudo vê
Os Ojos de Chavez é uma representação artística dos olhos estilizados de Hugo Chávez, 56º presidente da Venezuela, amplamente difundido entre os seus seguidores, o governo venezuelano e o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), sendo principalmente utilizada como ferramenta de propaganda política para o governo bolivariano, aparecendo em outdoors, camisetas e edifícios por todo o país.
Kuwei faz uma associação com o livro “1984”, de George Orwell, em que um Estado totalitário liderado pelo partido busca controle absoluto sobre a vida dos cidadãos, implementando vigilância extrema por meio de tecnologias como as teletelas, que podem monitorar e gravar as atividades das pessoas em suas próprias casas. “Como os olhos de Chavez estão espalhados por toda Venezuela, é como se o Estado estivesse te vigiando e impondo autoridade”, destaca o venezuelano.
Esse penetrante olhar é bastante explorado pelo atual presidente Nicolás Maduro, numa tentativa de evocar o saudosismo do governo de Hugo Chávez, tentando aproximar-se de sua popularidade.
O venezuelano também diz que o meme “olhos de Chávez” é visto por perspectiva humorística pelos opositores do presidente Maduro. Ele destaca que o termo é frequentemente utilizado de forma pejorativa para se referir à suposta habilidade de Nicolás Maduro de imitar Hugo Chávez.
Assim, Kuwei sugere que esse conceito é explorado pelo governo como parte de uma estratégia midiática para manter a lealdade à figura de Chávez, mesmo após sua morte. Na visão de Kuwei, essa narrativa é uma tentativa de consolidar o poder e legitimar a liderança de Maduro, mas ele a vê como uma manipulação da imagem do falecido presidente Chávez.
Quanto à oposição a Maduro, Kuwei aproveita para destacar o uso frequente de memes para expressar críticas e preocupações. Ele aponta para a falta de participação popular em supostos referendos sobre a questão, sugerindo manipulação por parte do governo. Para o venezuelano, a falta de pluralidade de opiniões devido à influência do governo sobre as emissoras de televisão torna os memes na internet como uma forma de contrabalançar essa narrativa oficial.
Os memes podem impedir a guerra
Na visão de Kuwei, como as emissoras de TV foram estatizadas, exibindo, geralmente, propaganda, “as informações são limitadas, então não há diversidade de pensamentos, como se não existisse pensamento crítico”, defende.
Nesse caso, ele acredita que os memes na internet são usados como resposta à mídia tradicional. Mesmo que inconscientemente, ridicularizar um possível conflito armado para recuperar Essequibo, com a Venezuela passando por hiperinflação, pode mitigar o nacionalismo inflamado e provocar um pensamento crítico. Isso porque o sentimento de injustiça por parte dos venezuelanos é antigo e atravessa gerações. O que torna essa disputa atual diferente das outras que ocorreram no passado? Kuwei é taxativo ao afirmar que torna a tensão surge apenas por fins de propaganda política e o medo do fracasso de Maduro.
Explicando os memes:
(1) A imagem critica o governo da Venezuela por reivindicar Essequibo enquanto ignora as dificuldades do seu país;
(2) O texto sugere que se Essequibo se tornar parte da Venezuela, pode haver controle estatal do Partido Socialista Unido da Venezuela, ao mostrar os “Olhos de Chávez”.
Se unirmos a educação à linguagem dos memes, principalmente os humorísticos online, o resultado pode ser a ampliação da consciência sobre determinados assuntos, provocando mudanças no mundo. Exemplos disso acontecem em outros conflitos, como a guerra russo-ucraniana e a israelo-palestina. Na disputa por Essequibo, a Guiana, como visto nesta matéria, concentra esforços em massificar a ideia de união guianense, gerando aprendizado sobre as atualidades. Sendo assim, os memes e sua capacidade de envolver as massas, podem pôr fim na concepção de que guerras são necessárias.