“Recife é possivelmente a cidade mais LGBT friendly e com mais opções de bares gays e baladas do Nordeste brasileiro”, afirma o site Estrangeira. Quem reside na “Veneza brasileira”, provavelmente conhece ou ouviu falar do “Boa Bicha” (como é chamado o bairro Boa Vista), onde se concentram os badalos dessa minoria social. Para o portal Catraca Livre, “isso reflete o quanto a cidade é aberta e segura para a comunidade LGBTQ”. Será mesmo?
No terceiro dia de 2023, um casal homossexual sofreu com o preconceito de um servidor público no Parque Treze de Maio, situado no famigerado “bairro da diversidade”. “Um simples ato de carinho virou um aperreio em nossa vida. Uma situação que nós não vamos esquecer”, desabafa Caio Gomes ao jornal Folha de Pernambuco, após ser expulso da área de lazer por trocar beijos com namorado. Não é um caso isolado: Recife reflete a realidade do estado com o maior número de crimes violentos contra população LGBTQIA+ do Brasil.
Além disso, nos primeiros 45 dias do ano passado, quatro mulheres trans foram assassinadas no estado — desses casos, três aconteceram no mesmo final de semana. As ocorrências se somam às outras e faz lembrar do assassinato de Fabiana da Silva, em 2021, na cidade Santa Cruz do Capibaribe – PE, e da brutalidade ocorrida com Roberta Nascimento, queimada viva nesse mesmo ano no Centro do Recife.
Essa realidade não consta nos guias turísticos da cidade e se você buscar a combinação das palavras “Recife” com termos similares a LGBT nos sites de pesquisa, como o Google, encontrará, na maioria das vezes, matérias positivas sobre o Recife contemporâneo, progressista e friendly.
Para o visitante, existe até um guia de onze páginas criado pela secretaria de Turismo e Lazer especialmente para a comunidade, listando sobretudo bares, boates, pubs e points. Apenas uma página é dedicada a apresentar informações sobre os poucos programas de proteção para essa população. Nota-se que não há nenhuma menção à garantia da segurança desse público, pois a mensagem implícita é: “consuma, consuma, consuma!”.
Enquanto outros municípios do estado e do Nordeste não têm iniciativas semelhantes, pelo menos Recife tem alguma coisa, por mais pífias que as sejam. Aliás, é a capital gerida pelo prefeito mais jovem da sua história. João Campos, de boa aparência, com ar vanguardista e filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), compartilha do estranho comportamento dos políticos locais de desaquendar (i.e. desaparecer. É uma gíria gay) sempre que o assunto envolve esse tema.
Inclusive, no plano de governo de Campos, o termo LGBT só aparece, timidamente, duas vezes, no eixo “Cidadania”, em que garante que “Estão definidas políticas públicas, programas, projetos e ações para as mulheres, população idosa, juventude, pessoa com deficiência, igualdade racial, LGBTQI+”. No entanto, João não cita quais são essas políticas, não explica como aplicá-las, nem sequer garante a sensação de segurança para a comunidade.
São notáveis os programas públicos em funcionamento para amortecer o preconceito, tais como o ambulatório LGBT Patrícia Gomes, o Centro de Referência em Cidadania LGBT e a plataforma online de denúncias. Porém, a maioria deles já existiam antes da gestão de João. Claro, o prefeito tão jovem não poderia revolucionar tudo em menos de quatro anos, mas não é surpresa a indiferença e inação dele.
O ente municipal certamente deve receber apoio do estadual para executar suas ações, mas se tratando desse tema, melhor não criar expectativas, já que, durante as eleições gerais de 2022, ficou evidente o desconforto dos candidatos ao governo de Pernambuco quando questionados sobre o assunto.
Por exemplo, no segundo turno, de um lado tinha Marília Arraes (Solidariedade) que apresentava um discurso raso, com frases feitas, e Raquel Lyra (PSDB), que parecia ter medo até de pronunciar a sigla, tremendo a irritação dos conservadores. Raquel conseguiu se eleger governadora e uma enorme interrogação paira no ar sobre a situação dos LGBT+ em Pernambuco e o diálogo entre Recife e o Governo do Estado para promover ações afirmativas.
Logo, não adianta mascarar a realidade pintando um arco-íris nas faixas de pedestre das vias, como aconteceu em 2019. Isso, porém, não aconteceu durante o governo de Campos. Em 2021, a vereadora Cida Pedrosa (PCdoB) apresentou um requerimento à prefeitura do Recife, mas ele nem chegou ao prefeito, pois foi rejeitado pela Câmara Municipal do Recife.
Eu evidenciei apenas autoridades do poder executivo, mas o legislativo, igualmente, é hostil e desfavorável ao diálogo com o povo queer. Na Câmara, inclusive, existe uma expressiva “bancada cristã”, composta por onze nomes. A implicância dos militantes com esse grupo não é por preconceito, mas sim porque eles travam a execução de medidas que afetam a vida de milhares de pessoas
Inclusive, a líder da bancada, Michele Collins (PP), principal opositora das faixas de pedestre coloridas, fez várias falas homofóbicas e transfóbicas em seu Instagram pessoal na quarta-feira (04/01), ao comentar sobre a substituição da secretaria Nacional de Cuidado e Prevenção às Drogas para a secretaria dos direitos LGBTQIA+, no início do terceiro mandato do presidente Lula (PT).
Por isso, as políticas precisam mirar na opinião pública, adentrando nos tecidos sociais. Se os LGBTs forem enxergados unicamente como seres dotados de poder de compra pelo Estado, sob a lógica do consumo, a barbárie continua, queimando mais mulheres trans vivas e expulsando casais de áreas de lazer por trocas de afeto, sem sequer comover a sociedade.
Glossário:
- Buruçu: segundo o Jornal do Commercio, o termo do dialeto recifense significa confusão, problema e tumulto.
- Frango: para o “Dicionário Arretado”, do site visit.recife.br, vinculado à secretaria de Turismo e Lazer da capital pernambucana, quer dizer bicha e homossexual.
FOTO: Diario de Pernambuco / Divulgação