A cultura dita “popular”, nomeada assim para contrapor a cultura “erudita”, carrega séculos de história e representa a ancestralidade de um povo. No entanto, frequentemente ela é esquecida pela indústria da mídia. Aliás, por vezes, a performance dessas manifestações é desencorajada em uma tentativa de apagamento.
O coco como tradição cultural de Igarassu
O coco é uma das tradições culturais de Igarassu. Em décadas atrás, o município costumava ser reconhecido como a “Cidade do Coco”. No entanto, com o passar dos anos, essa herança se encontra ameaçada pela indiferença, talvez por sempre existir em “clandestino”, enfrentando problemas na sua preservação enquanto patrimônio imaterial, apesar da resistência das gerações mais jovens que renovam a tradição e deixam a sua marca.
A história do coco
Antes de adentrarmos na questão da preservação do coco, cabe uma apresentação da manifestação artística. O campo de pesquisa acadêmica sobre a área ainda é pequeno, mas muitos avanços já foram alcançados quando falamos na origem do ritmo.
Segundo especialistas, o coco, apesar da origem incerta, provavelmente surgiu na antiga Capitania de Pernambuco, que detinha o atual território dos estados de Alagoas e Paraíba. Ele teria nascido nos quilombos (inclusive, em Igarassu existe uma comunidade quilombola) e seu primórdio está relacionado ao trabalho de quebrar os frutos dos coqueiros e palmeiras.
O som produzido pelo trabalho repetitivo de quebrar os frutos rígidos era acompanhado de cânticos. Em um primeiro momento ligado a um trabalho manual, com o tempo o coco passou a existir como prática artística por si só.
Apesar da origem no interior nordestino, o coco, assim como a ciranda, consumou-se como um ritmo praieiro, estando bastante presente nas comunidades de pescadores e marinheiros do Nordeste.
A influência africana é predominante no ritmo, evidenciada pelos passos, movimentos, instrumentos e a própria forma de cantar. Contudo, existe também uma forte contribuição indígena.
A situação atual do coco em Igarassu
Antes de escrevermos esta reportagem, tivemos a oportunidade de entrevistar Dona Lourdes, uma mulher negra de 79 anos que carrega uma enorme bagagem cultural acerca de sua cidade, Igarassu, no estado de Pernambuco; nós a entrevistamos no bairro Santo Antônio, onde ela reside.
Parecíamos estar “caçando” peças de um quebra-cabeça que ilustrava o passado cultural de Igarassu, porque ela sempre tinha uma anedota sobre as manifestações culturais como o coco, ciranda, quadrilha, bumba meu boi, pastoris, cavalo-marinho e frevo. De todos, o que mais debatemos foi o coco.
Nessa conversa, ela contou com tristeza a diminuição do número de rodas de coco no município. Esse foi o estopim para nossa busca por respostas acerca da situação atual da manifestação artística, antes considerada referência no município. Uma das últimas coisas que ouvimos dela foi este manifesto, em tom melancólico e de lamento:
“Eu pediria aos jovens para que não esquecessem das coisas passadas. Temos que dar continuidade à cultura para não deixar ela morrer. Não deixem a nossa arte acabar! O coco é tão antigo que vocês nem imaginam (…) estão deixando dar fim.”
As dinâmicas de preservação
Quando falamos em dinâmicas de preservação de cultura popular, quase sempre somos direcionados à patrimonialização. No tocante ao coco, ao ouvirmos a prefeitura de Igarassu, nos foi informado que não existem ainda planos em execução para transformar o coco em patrimônio imaterial do município, apesar do interesse em concretizar isso.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), seguindo o artigo 216 da Constituição Federal de 88, considera patrimônio imaterial celebrações e saberes da cultura popular, as festas, a religiosidade, a musicalidade e as danças, as comidas e bebidas, as artes e artesanatos, mitologias e narrativas, as línguas, bem como a literatura oral.
No contexto do coco, existe a experiência de João Pessoa, na Paraíba. A capital nordestina declarou o coco de roda e a ciranda como patrimônio imaterial em 2021. Porém, a patrimonialização não é a única saída possível para a preservação de uma cultura popular. O pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Thiago Soares, conta:
“Se ela [a patrimonialização] não vem acompanhada de políticas públicas concretas é insuficiente na preservação de um ritmo. Porém, esse é um passo importante, pois abre margem para debates e pressões da sociedade civil, bem como dos artistas em prol de ações que assegurem a continuidade da manifestação artística.”
Relações de poder e a cultura popular
Um ponto importante a destacar é que as dinâmicas de preservação de manifestações culturais populares são atravessadas por relações de poder. Afinal, quem decide o que deve ser preservado?
“As manifestações de grupos subalternos, a exemplo dos corpos racializados, estiveram historicamente fora dos lugares de poder. Portanto, as iniciativas de arquivo, preservação e patrimonialização existentes em sua maioria são marcadas pelas ausências delas.” destaca Thiago.
O pesquisador lembra ainda de um fator específico na preservação de ritmos musicais populares. Quando falamos em música, as instituições que possuem autoridade e legitimidade para tratar dos valores musicais são os conservatórios.
Esses são espaços que repercutem o saber musical eurocêntrico, muitas vezes com poucas aberturas para vivências artísticas fora do eixo erudito. Sendo assim, evidenciamos uma relação de poder ainda mais sintomática.
A dimensão arquival e a performance
Ainda dentro das dinâmicas de preservação é válido debater acerca do arquivo. Ele costuma ser a principal estratégia do poder público no intento de manter uma manifestação cultural viva. No entanto, pode-se fazer uma crítica a ele, como alerta Thiago:
“O arquivo deixa de fora uma série de manifestações culturais que são da ordem do corpo e da memória. Esse é justamente o traço principal das culturas populares, que em suas manifestações estão fortemente ligadas à história oral. O arquivo falha em documentar as atividades que possuem uma lógica de repasse diferente da lógica arquival. Esse é o caso do coco e suas práticas corporais: elas são construídas através da memória coletiva dos grupos que a mantêm viva como cultura.”
Ele ressalta que as políticas públicas voltadas para o coco, bem como para as demais manifestações populares, devem oferecer possibilidades para que os próprios artistas criem estratégias de repasse e documentação da tradição.
A preservação do coco em Igarassu
Buscamos produtores culturais do coco em Igarassu para entender as suas dores e desafios. Em paralelo, também procuramos o ponto de vista de representantes da secretaria executiva de Cultura de Igarassu acerca da preservação dessa riqueza imaterial.
A primeira pessoa com quem conversamos foi Luana Gonçalves, uma jovem negra de 24 anos, produtora cultural, backvocal do grupo musical e de dança Coco Juremado e, além de tudo, neta de Dona Lourdes, a quem já entrevistamos.
Perguntamos quais foram as dificuldades que ela enfrenta/ou em promover essa atividade cultural, e sua resposta expôs um ponto importante: a falta de apoio municipal. “A maior dificuldade que eu encontro é a falta de incentivo e políticas públicas. É impossível viver só de fazer cultura aqui em Igarassu. Falta muito subsídio”, ela nos relatou.
A antiga “Cidade do Coco” deveria ter, pelo menos, algum projeto para honrar esse título, embora obsoleto, e alguma iniciativa voltada a quem faz cultura. Sondamos com Luana e ela nos disse que reconhece esforços da prefeitura e que até já foi beneficiada por algumas medidas, mas nada voltado ao coco, especificamente:
“Fui beneficiada pelo auxílio emergencial de Carnaval por dois anos, mas não existe um projeto específico voltado ao coco de roda aqui em Igarassu. A prefeitura toma medidas que estimulam a cultura sim: por exemplo, quando fazemos eventos e solicitamos, por ofício, alguns materiais, a gente consegue. A cidade ainda tem um pensamento muito colonial, por ainda ter, exemplificando, Duarte Coelho, um explorador, como herói; mas ele não foi nada disso. Não dá mais para as escolas ensinarem às crianças que ele foi bonzinho, tem que contar a história verdadeira.”
O auxílio emergencial a que Luana se refere foi intitulado “Lia do Coco”, em homenagem à ilustre figura igaraçuana que faleceu no ano passado, representando uma perda inestimável para a cena cultural do município.
Dona Lourdes nos contou bastante sobre a figura que era Lia do Coco, muitas vezes chamada “Lia de Igarassu” para não se confundir com Lia de Itamaracá, da ciranda. No entanto, Lia (a de Igarassu), não nasceu em Igarassu. Ela, como mostra neste vídeo, conta que só começou a receber apoio nessa cidade, por isso a ama tanto.
A verdade é que a população lhe abraçou. Ela foi acolhida pela antiga “Cidade do Coco”, a ponto de ser notada recentemente pelo poder público, mesmo que após a sua morte.
Os planos para o futuro do coco em Igarassu
Conversamos também com a secretária executiva de Cultura, Concita Carvalho. Perguntamos sobre a existência de projetos ativos ou futuros pautados na preservação da tradição do coco. Ela diz que existem e cita o auxílio que recebeu o nome de Lia:
“Queremos propor a salvaguarda do coco. Nós temos olhado pra isso, tanto que nomeamos o auxílio de Carnaval na pandemia como ‘auxílio Lia do Coco’. Pois, Dona Lia, nesses últimos tempos, foi quem mais movimentou Igarassu com sua poesia e arte ligadas à roda de coco”.
Essa não foi a primeira lei criada relacionada ao coco. Em uma consulta a Lei Orgânica Municipal e descobrimos que Igarassu já teve um “Dia Municipal do Coco”, que costumava ser comemorado no segundo sábado de setembro de cada ano, com disposição de verba para “fazer face às despesas com comemorações previstas no artigo segundo desta lei”.
A lei foi criada em 5 de agosto de 1977, e revogada anos depois pelo profundo esquecimento, porque ninguém a conhecia. Ninguém se recorda e não há tradição na cidade de um “dia do Coco”. Nem Luana, nem Concita sabiam da existência da lei.
“Não sei se a criação da data foi um passo concreto do poder público para a preservação, porque nada foi feito”, declarou Luana. A secretária nega a existência de um histórico de comemoração da data, mas revela ter planos para serem colocados em prática sobre isso:
“(…) A lei foi sancionada há mais de 50 anos e nunca se promoveu nada em cima dela. Então nós vamos, sim, colocar em prática essa lei que já tínhamos — e que nunca foi executada —, e pediremos um plano de ação para nossa prefeita para que essa salvaguarda seja criada. Nosso plano é colocar em prática esse Dia da Roda de Coco, promovendo eventos no centro, bem como em outros locais do município”.
Apesar das dificuldades que o coco enfrenta para ser reconhecido como elemento valoroso na cidade de Igarassu, por incentivos e também registros, há um consenso entre Luana e Concita: as gerações mais jovens, “principalmente os negros e periféricos”, como disse Luana, estão “renovando o cenário coquista, deixando as suas marcas, seus valores”, como complementa Concita.
Jefferson Ricardo
Texto feito em parceria (...)