O Rio São Domingos, mais conhecido como “Rio Igarassu”, no litoral norte de Pernambuco, possui um vasto ecossistema de mangue que se formou graças à proximidade com o mar, sendo lar de diversas espécies, principalmente pequenos crustáceos (em especial o aratu).
Ele corta o Centro de Igarassu, cidade onde vivo, dividindo-o, ao mesmo tempo em que forma um elo com os municípios vizinhos: faz parte do estuário do Rio Timbó, que atravessa os municípios de Paulista, Abreu e Lima, Itapissuma, Ilha de Itamaracá e Goiana; todos na Região Metropolitana do Recife.
No passado, “em suas águas claras, muita gente tomava banho, mas hoje muitos evitam dar um só mergulho, temendo uma contaminação”. Isso é o que consta numa notícia do jornal Diario de Pernambuco, em 1979.
Em 2022, a alegação continua fidedigna, mas seria injustiça desconsiderar os esforços de um senhor que, todos os dias, limpa as proximidades do rio, chegando a se arriscar, por vezes, ao mergulhar para remover algum detrito da água.
Benício André de Souza Bonfim se apresenta como “General Benício”. Tem 72 anos e veste um traje militar em farrapos para realizar sua “missão” diária de varrer as folhas das castanholas que cobrem como um manto o solo argiloso da orla do mangue.
Quando conversamos pela primeira vez, estávamos às margens do mangue, sentindo o cheiro pungente de enxofre, típico do ecossistema. O general se aproximava do meu rosto de forma desconfortável para tentar me enxergar, porque tem baixa visão, facilmente identificável ao visualizar um dos seus olhos, de cor acinzentada. Seu cabelo é longo, liso e desgrenhado, as unhas são grandes e sujas; de tanto levar sol, a pele morena é coberta de melasma.
Após apresentar-me, ansiosamente pediu ajuda: “meu jovem, preciso que você fale com Josy, secretária da prefeitura, para me dar a bonificação. Exijo um esclarecimento da Assistência Monetária”.
Trabalho na prefeitura de Igarassu, não há nenhuma secretária Josy, nem sequer uma “Assistência Monetária”. Na verdade, o que ele buscava era o IGAPREV, a Previdência Municipal de Igarassu, para receber o seu salário de aposentado. Quem geralmente o auxilia com isso são seus parentes, como sua sobrinha Raquel. Pelo fato de morar só, revelou-me ser difícil, às vezes, ter seu dinheiro na conta para sobreviver.
Sua maior preocupação, no entanto, era outra: em tom severo, porém diminuindo o volume, como quem conta um segredo a alguém, ele disse: “Gostaria que, urgentemente, você procure a Assistência Técnica Planetária também”.
Para quê? Para proteger o Paraíso Terrestre, ele me contou. Esse lugar, segundo sua visão, é tudo que existe: o planeta Terra, onde pisamos, as árvores, animais (exceto alguns), todas as nações, nós mesmos. ‘O que ameaça tudo isso?”, perguntei. Ele respondeu: “O Podre” e acrescentou: “Jesus disse que erraram o nome da palavra ‘padre’, pois deveria ser ‘podre’”.
Ele prossegue: “Os padres já destruíram o mundo uma vez; já vi um comer a carne de Deus crua. A Lua está descendo devido ao maldito raio laço e preciso evitar todo esse caos”.
Essas declarações me deixaram desconcertado e mais curioso. Quanta criatividade! O raio laço provém do “grelo” dos sinos das igrejas, segundo ele; sua função é canalizar a energia ruim dos Podres e desequilibrar a estabilidade dos planetas.
Benício é tão fascinado pelo espaço que afirmou já ter visitado Marte, mas gosta mesmo é de sua criação de gados na Lua. Ele lamenta a falta de tempo porque está empenhado em salvar nosso Paraíso Terrestre, mas assim que conseguir, pegará um helicóptero rumo ao satélite natural gelado, como já fez uma vez.
Perguntei por que ele faz esse trabalho de limpeza todos os dias e respondeu impaciente, sentindo-se talvez contrariado e enfadado com minha inocência: “É uma missão ordenada pelo Exército Brasileiro e, se eu não faço isso, sou um criminoso. Você acha que vou abandonar a Pátria? Meu jovem, um dia você me entende”, proclamou retumbante.
Aproveitou a ocasião para detalhar sua responsabilidade de evitar a consumação do Podre, que nos colocaria em risco; por isso, prepara aquele terreno peculiar para a chegada d’O Evento: o dia em que todo seu trabalho pode dar errado pela chegada dos Podres.
É por isso que, para atingir seu objetivo, o General clama minha ajuda sempre que me vê passeando pelo Centro, porque é improrrogável contactar a Assistência Técnica Planetária, que possui parceria com a Organização das Nações Unidas, para poderem enviar reforços. Quando esteve nos Estados Unidos da América pelo Exército, soube disso.
O Evento deve acontecer justo ali, próximo do Centro de Artes de Igarassu, na beira do mangue, porque “Querem a todo custo destruir esse rio, meu santo” — é como ele costuma me chamar. Em seguida, explana: “Tudo pertence a Igarassu. Igarassu fez o Brasil, não foi? Dizem que o Oceano [Atlântico] fez um rio que passa nas outras cidades e desemboca aqui, mas é o oposto: o Rio Igarassu fez os outros e ele criou o Oceano depois”.
Ele é dos meus, porque tenho um amor descomedido pela minha cidade, mas o bairrismo dele é mais grave que o meu! Curiosamente, Benício mora em Itapissuma, mas se defende: “Sou cidadão de Igarassu, porque quando era da sua idade, Itapissuma nem existia, era tudo Igarassu, terra de todo mundo”; é verdade, porque o município mencionado tem 40 anos de emancipação.
O General tem um linguajar requintado, demonstrando ser uma pessoa inteligente; a prosódia de sua fala é exagerada, colocando ênfase em sílabas desnecessariamente, lembrando o jeito cômico de um pastor protestante. Por isso, perguntei com o que ele já trabalhou na vida e ele disse: “Motorista, operador de máquinas, general e missionário”.
Ele fez até bico de astronauta, porque em 1958 perdeu-se no espaço, conforme me contou.
Tentei mapear mais de sua vida, ouvir suas histórias dignas de roteiros da Marvel, mas ele aparentava querer adiar nosso papo, porque me dizia sempre: “Peço licença, meu santo repórter, mas preciso continuar o trabalho”. Eu, teimoso, concordava e perguntava mais; isso o deixava irritado.
Seu último pedido foi: “Preciso de poda nessas árvores, uma equipe da secretaria do Meio Ambiente para limpar o berço de Igarassu e uma base pré-montada para a fogueira no dia da consumação do Podre. Essa sentença, meu santo, foi autorizada pelo Papa Francisco. Você é jornalista, documente isso!”
Após o diálogo, uma senhora me vigiava curiosa. Tratava-se de Dona Dulce, do bairro Beira Mar II, de Igarassu, que me conta que: “Isso é o refúgio dele” e que “se alguém bulir com ele, a população não deixa, porque gostamos dele. Nunca maltratou ninguém”.
“Ele trabalha ciscando as folhas e juntando esse monte de areia… Não sei se ele vende, porque mal fala com as pessoas, é muito reservado. Sei que sua família é grande em Itapissuma. Ele não tem uma realidade das histórias que conta; uma vez disse que trabalhou na guerra… no tempo da escravidão”, informou Dona Dulce.
Perto de onde Benício realiza seu trabalho diário, o Seu Zé Luís vende salgados e caldo de cana-de-açúcar. Quando sondei mais dessa figura com ele, notei similaridades com as falas de Dona Dulce: “É a terapia dele, porque não bate bem do juízo. Quer cuidar da natureza, ele falou. Às vezes me compra fiado e não paga (risos), mas tenho pena e dou alguma besteira para ele comer. Algumas pessoas param para falar com ele aqui, mas não sei se é da família. Ele para o trabalho para conversar comigo, mas não gosto das suas histórias, porque senão posso ficar doido também. Até na chuva esse homem trabalha”, declarou Seu Zé.
O guarda Jorge, da prefeitura, disse-me: “Ele é meio louco, mas não precisa ter medo, ele é assim porque tem trauma de alguma guerra que participou. Foi um General, parece. Lutou em alguma guerra e hoje é bitolado por isso. Trauma, né?”.
Seu Benício tem tantas histórias e os moradores desta cidade têm tantas ficções a respeito de sua figura que é difícil documentar tudo. Sua pessoa é envolta de mistério e seria necessário fazer uma visita em Itapissuma, na rua Chifre de Ouro, onde informou residir. Aspiro levar adiante essa pesquisa e agradeço ao meu padrinho, Paulo Lemos, por contar sobre essa lenda vida, que realiza o mesmo trabalho há, pelo menos, 30 anos, para salvar nosso Paraíso Terrestre e Igarassu.
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