Aratu online

A luta e a conexão com a natureza dos indígenas que floresceram no urbano

O conteúdo desta reportagem foi escrito em julho de 2023. As informações apresentadas podem estar desatualizadas. Fiz esse texto como aluno da Universidade Federal de Pernambuco e tive uma experiência incrível! O tema me intrigou desde que tomei ciência, e devo confessar que a jornada me levou a explorar alguns saberes exóticos pelo caminho. Afinal, faz parte da experiência jornalística ter aventuras. Um agradecimento especial ao fotógrafo e jornalista, John Willian, que foi um grande companheiro nessa aventura, com toda a paciência do mundo!

A 27 km da capital pernambucana, em Igarassu, a recém-formada Aldeia Marataro Kaeté reúne uma diversidade de povos indígenas: os nativos Xucuru, Wassú-cocal, Fulni-ô e os Warao, povo vindo da Venezuela. Dessa união, surgiu o nome Karaxuwanassu, um acrônimo das etnias que também pode significar “grande povo guerreiro”. Mesmo situada em um contexto urbano, essa comunidade preserva uma conexão profunda e única com o meio ambiente.

Logo na entrada da aldeia, um painel grafitado destaca uma serpente em estado de alerta, dando as boas-vindas aos visitantes. A poucos metros dali, um caminho repleto de majestosos jambeiros forma um túnel natural que convida os visitantes a mergulharem em outras vivências.

FOTO: John Willian

Toda a história do surgimento da Aldeia Marataro Kaeté começou em janeiro de 2021, quando um grupo de indígenas buscou vacinas contra influenza no Distrito Sanitário I do Recife. Apesar de apresentarem a carteira de identificação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), tiveram o benefício negado. “O Estado não reconhece o indígena fora de seu território,” relata Ridivânio Procópio (42), mais conhecido como pajé Juruna, estudioso da língua bororo, do tronco linguístico Macro-Jê.

Pajé Juruna / FOTO: John Willian

“Se o problema é falta de aldeia, então vamos criar uma”. Com essa decisão firme, Rubenita, a vice-cacica, começou um movimento. Desde 2017, indígenas do povo Karaxuwanassu, que viviam espalhados pela Região Metropolitana do Recife, começaram a se organizar, fundando a Associação de Indígenas em Contexto Urbano (Assicuka). “Somos indígenas onde quer que a gente esteja”, afirmam representantes da associação, que busca fortalecer a identidade e os direitos dos indígenas em áreas urbanas.

A vice-cacica Rubenita Karione, bióloga e líder dos Karaxuwanassu, utiliza seus conhecimentos acadêmicos em prol da comunidade, aplicando técnicas como a agricultura familiar e o sistema agroflorestal em harmonia com a sabedoria tradicional indígena. Ela explica que o desenvolvimento da “terra preta do índio (TPI)”, rica em matéria orgânica, é um exemplo de como a agroecologia pode ser integrada às práticas ancestrais.

“Nós temos um desenvolvimento amoroso com a Mãe Natureza, porque é da terra que precisamos para sobreviver, e ela é a nossa escola”, destaca Rubenita, evidenciando a relação de respeito e reciprocidade com o ambiente.

Rubenita nos trabalhos de recuperação do solo / FOTO: John Willian

 

Essa relação harmônica permite que os Karaxuwanassu utilizem plantas medicinais em seu cotidiano, substituindo tratamentos modernos em alguns casos. Para gripes e resfriados, por exemplo, usam as folhas do xambá (Justicia pectoralis); em casos de febre, bronquite e tosse, recorrem ao chá de cambarazinho (Lantana camara); já para dores de dente, utilizam a rama de batata-doce (Ipomoea batatas), conhecida por suas propriedades anti-inflamatórias. 

Entre todas as plantas, uma se destaca: a Mimosa tenuiflora, também conhecida como jurema preta ou jurema sagrada. Suas sementes têm um valor inestimável, transmitidas de geração em geração como um tesouro ancestral. Essa planta desempenha papéis diversos, presentes nas práticas religiosas e espirituais, enquanto sua seiva é utilizada como tinta e o caule para a produção de carvão. Para Rubenita, “a jurema age no corpo principalmente para limpeza e cura do espírito”.

A ligação profunda dos Karaxuwanassu com a natureza vai além do uso religioso da jurema. Quando a lua cheia ilumina o céu, eles iniciam a dança do Toré: um ritual singular que mescla dança, religião, luta e brincadeira. Essa poderosa manifestação é uma tradição entre os indígenas nordestinos e, em cada comunidade, o Toré tem características próprias. Na Aldeia Marataro Kaeté, os Karaxuwanassu cultuam os Encantados, entidades espirituais, em um sincretismo que inclui a devoção à Nossa Senhora dos Encantados (representação de Maria, mãe de Jesus), a qual chamam carinhosamente de “Mãe Natureza”.

Os Karaxuwanassu também encontram outra forma de aproveitar os recursos naturais através do artesanato. “Aqui, nós manuseamos com atenção uma variedade de sementes para criar colares, brincos, anéis e diversos utensílios. Eu sou artesão e sei fazer tudo isso, e uso o que a terra nos dá. As sementes mais importantes são o sabiá, açaí, feijão-guandu, jupati, olho de pombo e ipê”, revela com orgulho o pajé Juruna, de 42 anos. Ele ressalta que cada uma dessas sementes carrega um significado especial para o povo Karaxuwanassu.

Produtos artesanais que vendem / FOTO: John Willian

Os desafios e a luta pelo amanhã

Obstáculos e superações marcam o caminho dos Karaxuwanassu. Priorizando a restauração de um solo degradado, a vice-cacica destaca o esforço de seu povo para depender menos de doações de cestas básicas e voltar-se à generosidade da natureza. “Encontramos uma terra que já não é virgem e está completamente desgastada,” relata Rubenita.

Nos meses de fevereiro e março, a aldeia enfrentou uma escassez de água quando a bomba do poço parou de funcionar. A comunidade suspeita de um boicote no sistema de energia, mas, sem perder a determinação, buscaram soluções ao utilizar água do açude e do rio nas proximidades. Contudo, essa luta pela sobrevivência se torna mais complexa, pois o rio é eutrofizado — ou seja, tem excesso de nutrientes que favorecem o crescimento de algas e prejudicam a qualidade da água, ainda que sirva como fonte de sustento pela pesca.

 

Animais como peixes não conseguem viver num rio sem oxigênio. FOTO: John Willian
Açude utilizado pela Aldeia. FOTO: John Willian

“Tivemos que ficar atentos, porque tinha gente contra nós, colocando jacaré no rio para nos prejudicar.” Somos um povo guerreiro, mas a situação é difícil. A questão da água foi uma grande dificuldade. Mas agora, com as chuvas e a bomba arrumada, conseguimos regar nossas plantações e depender menos desse rio que precisa de muito cuidado. Ainda assim, vai ser uma tarefa difícil recuperar as margens e cuidar do mato que cresceu”, relata Karione.

FOTO: John Willian

O solo que sustenta as raízes da Aldeia Marataro Kaeté é palco de disputas. Enquanto os indígenas lutam pela demarcação de seu território, a prefeitura de Igarassu reivindica a posse da área, ocupada no passado pelo Polo Ginetta, uma empresa ligada ao Movimento dos Focolares. Caso os Karaxuwanassu alcancem seu objetivo, essa será a primeira vez que uma terra indígena é reconhecida em um contexto urbano.

 

Apesar das adversidades, a resiliência desse povo permanece viva. Essa jornada não é apenas um embate pela posse de terras, mas uma luta para preservar raízes culturais, honrar os antepassados e encontrar o equilíbrio entre tradição e inovação. No centro dessa batalha está a conexão com a Mãe Natureza, e a compreensão de que ser humano e meio ambiente são inseparáveis.

E aí, gostou? Que tal comentar sobre?